A Necrose Avascular da Cabeça do Fêmur (NACF) é uma patologia que geralmente acomete o quadril de adultos jovens (mais frequente nas 3° e 4° décadas de vida) e caracteriza-se por uma interrupção no suprimento sanguíneo do osso da cabeça do fêmur. O gênero masculino é mais comumente acometido (quatro homes para cada mulher). O que causa a doença é a interrupção da irrigação sanguínea para as células do osso da cabeça do fêmur. Sem o aporte sanguíneo, a porção óssea acometida necrosa. A interrupção do aporte sanguíneo (infarto) causa dor aguda no quadril, que pode ser abrupta, mas geralmente é gradativa, sendo o principal sintoma. Os dois quadris podem ser acometidos em 30-80% dos casos.
Os motivos pelos quais deixa de chegar sangue em parte do osso da cabeça do fêmur são variáveis (dependem da causa) e não são totalmente conhecidos. Na verdade, há uma combinação de fatores externos e predisposição do indivíduo (fatores genéticos). De modo geral, os genes relacionados à formação de colágeno tipo II, à coagulação sanguínea, ao metabolismo da gordura e à síntese de óxido nítrico (um vasodilatador), podem estar envolvidos.
A CAUSA
A consulta de um paciente com suspeita de Necrose Avascular da Cabeça do fêmur tem que incluir uma investigação minuciosa do fator causal. No entanto, em até 15% dos casos não se evidencia tal causa e a osteonecrose é denominada idiopática (sem fator conhecido).
A causa mais comum de Osteonecrose
Quanto aos fatores externos, o uso de corticoide é o mais comum. O mecanismo pelo qual os corticoides causam o infarto da cabeça do fêmur é incerto, mas alguns autores acreditam que seu uso crônico causa aumento das células gordurosas da medula óssea e acarreta compressão dos vasos que irrigam a cabeça do fêmur. Outra teoria é de que o consequente excesso de gordura gere êmbolos gordurosos que obstruem os vasos que irrigam a cabeça do fêmur. Foi demonstrado que uma dose diária de 2 gramas de prednisona por um período mínimo de 2-3 meses resulta em um aumento do risco. Nas pessoas que tem predisposição, a doença costuma se apresentar 3-24 meses após o início do uso de corticoide.
Vícios sociais e a necrose avascular da cabeça do fêmur
Outros fatores relevantes são o álcool e o tabagismo. Pessoas que consomem mais de 400mL/semana de álcool (22 latinhas de cerveja ou 1 litro de uísque) tem um risco 11 vezes maior de desenvolver a doença quando comparado a não alcoolistas. Com relação ao tabagismo, uma quantidade de 20 marços/ano também aumenta a probabilidade de Necrose Avascular da Cabeça do Fêmur. Lembrando que, muitas vezes, o consumo de álcool e tabaco ocorre de forma concomitante, o que pode agravar a situação.
A COVID-19 e a necrose avascular da cabeça do fêmur
Sem dúvida, merece destaque a necrose avascular da cabeça do fêmur pós-COVID. Uma primeira epidemia de coronavírus em 2003 que desencadeou a síndrome respiratória aguda grave foi identificada como fator de risco da necrose óssea. Então, com o surgimento da pandemia de COVID em 2019, era de se esperar que o novo coronavírus também acarretasse como sequela o mesmo problema, já que também provoca um estado trombofílico e a formação de trombos nos vasos que irrigam a cabeça do fêmur causam a necrose isquêmica. Outro fator que aumenta a chance desses pacientes desenvolverem a doença é que, em casos graves de COVID, o uso de corticoide em altas doses é comum, contribuindo para o desfecho ruim. O dia a dia do consultório vem demonstrando que a expectativa se confirmou e os casos têm aumentado.
Outras causas de Necrose Avascular da Cabeça do Fêmur
Existem diversos outros fatores que o ortopedista especialista em quadril bem treinado deve questionar ao paciente para tentar chegar a uma possível causa, como por exemplo:
- Anemia Falciforme
- Doença de Gaucher
- Lupus
- Artrite reumatóide
- HIV
- Coagulopatias
- Gravidez
- Traumas
SINTOMAS E EXAME FÍSICO
A dor de início agudo localizada na região da virilha é o principal sintoma. Essa dor, muitas vezes, é intermitente com o caminhar e descrita pelo paciente como profunda e latejante. Às vezes, ela pode irradiar para o joelho, a exemplo de outras patologias do quadril. Com a progressão da doença, a dor pode se apresentar mesmo com o paciente em repouso. No exame físico, o ortopedista especialista em quadril bem treinado realiza manobras para diferenciar a dor articular da extra-articular, o que junto com a história clínica direcionam para o diagnóstico e orientam os exames complementares a serem realizados.
EXAMES COMPLEMENTARES
Os exames que auxiliam o diagnóstico são principalmente a radiografia (raio x) da bacia e a ressonância magnética para um diagnóstico mais precoce. A cintilografia e procedimentos invasivos raramente são necessários e caíram em desuso.
FATORES PROGNÓSTICOS
Alguns fatores nos ajudam a prever a chance de uma cabeça do fêmur com osteonecrose evoluir para artrose do quadril com perda da cartilagem e da conformação esférica da cabeça do fêmur. Nos exames de imagem, as alterações que alertam para um prognóstico ruim são colapso da superfície articular da cabeça do fêmur (perda da conformação esférica com aplanamento de uma determinada área); o volume acometido pela necrose maior que 30% (outro método usa a somatória de ângulos calculados em duas incidências no raio x); a quantidade de depressão da cabeça maior que 4mm também denota pior prognóstico; acometimento da área de carga; e o envolvimento da superfície acetabular.
Em mais de 80% dos casos sintomáticos e 66% dos casos assintomáticos sem tratamento, a história natural da doença leva à coxartrose. E até mesmo a resposta a maioria dos tratamentos preservadores é incerta, o que torna a condução da doença peculiar.
TRATAMENTOS
Vários tratamentos são possíveis, dependendo do estágio evolutivo da osteonecrose. Podem ser conservadores (sem cirurgia) ou cirúrgicos, sendo estes preservadores da cabeça do fêmur ou não (prótese de quadril).
Sem cirurgia
Os tratamentos não-operatórios incluem como opção a abordagem medicamentosa, que visa intervir em alguma causa identificável como hiperlipidemia tratada com estatinas, ou anticoagulantes para tratar trombofilias e até medicações que agem no metabolismo ósseo como os bifosfonatos. Outras opções são a oxigenoterapia hiperbárica e ondas de choque. Embora estudos futuros possam comprovar benefícios em tratamentos não-cirúrgicos, atualmente não se pode afirmar que estes impedem a progressão da doença. Desse modo, não são usados de forma rotineira. Além disso, sabe-se que um possível benefício ocorre em estágios muito iniciais da doença, quando raramente os pacientes procuram o médico.
Outra opção é não tratar a doença em si, mas tratar a dor do paciente. Além do uso de analgésicos, existe a possibilidade de realizar infiltrações e bloqueios de nervos do quadril de forma sucessiva. Geralmente fazemos esses procedimentos guiados por ultrassom. Em alguns casos são opções a serem consideradas, mas não estão isentas de complicações e podem influenciar negativamente em um tratamento definitivo no futuro (aumentando risco de infecção e perda de propriocepção).
Cirúrgicos
Preservadores
Os procedimentos cirúrgicos que visam preservar a cabeça do fêmur são a descompressão, com ou sem enxertos, sendo estes sintéticos ou autólogos, vascularizados ou não. Ainda há a opção das osteotomias (cortes no osso para reposicionar a cabeça do fêmur).
Dentre esses métodos o mais estudado e mais reprodutível é a descompressão, a qual tem melhor indicação em estágios iniciais da doença, sem um colapso da cabeça do fêmur, com lesões pequenas (menores do que 30%), em pacientes sintomáticos há pouco tempo. Tem o objetivo de remover osso necrótico e diminuir a pressão na medula óssea. É justamente nos pacientes que têm edema na medula óssea, que o procedimento costuma causar um alívio imediato da dor. No entanto, por vezes os sintomas recorrem após 3-6 meses da descompressão e a progressão da doença ocorre por motivos ainda desconhecidos. No pós-operatório dessa cirurgia, a deambulação ocorre com o auxílio de muletas por 6 semanas.
Quando se faz uso de enxertos, o objetivo é dar suporte estrutural à região que ficou sem o osso necrótico e guiar a formação de osso novo, mas sua eficácia é incerta e controversa. Além disso, pode trazer complicações tanto no local receptor quanto no doador do enxerto. Também podem dificultar possíveis tratamentos futuros.
A complementação com a injeção de substâncias como células tronco, fatores de crescimento e aspirado de medula óssea também podem ser associados, mas carecem de maiores estudos e alguns não são permitidos no Brasil, como o uso de células tronco.
Todas essas técnicas apresentam vantagens e desvantagens que devem ser esclarecidas ao paciente com consequente taxa de sucesso variável para cada caso, a depender das características do paciente e da lesão.
De substituição da articulação
Por fim, o tratamento cirúrgico de substituição da articulação nativa por uma prótese de quadril. Dentre as opções, a artroplastia total de quadril é a mais estudada e que demonstra melhores resultados, sendo praticamente unanimidade entre os cirurgiões de quadril. A durabilidade e complicações da prótese bipolar (ou parcial) e da artroplastia de recapeamento (resurfacing) tornam essas opções menos comuns. Uma das principais preocupações relacionadas as próteses de quadril em pacientes jovens é a durabilidade do material. Atualmente os materiais utilizados em próteses para paciente com alta expectativa de vida, como é comum na osteonecrose, tem durabilidade muito elevada e alguns estudos ainda em prosseguimento para estimar tal durabilidade já com mais de 35 anos de seguimento. Próteses de cerâmica biolox delta, polietileno highly cross-linked e oxinium são opções a serem consideradas pelo cirurgião e explicadas aos pacientes que se propõe ao tratamento definitivo desta patologia em estágios avançados.
Quanto mais esclarecidas as dúvidas do paciente sobre a doença, seu prognóstico e opções de tratamento, melhor o caso será conduzido. Este é um tema que nem todas as respostas são conhecidas pela ciência, e isso pode gerar aflição no paciente jovem, mas muito já se sabe e as melhores opções para cada indivíduo devem ser discutidas na consulta.